17.11.06

Recordações de Vizela - António Figueirinhas - Porto 1901

A ILHA DOS AMORES

(…) Conhece a Ilha dos Amores, aqui de Vizela?

A Ilha dos Amores é uma das preciosidades mais deliciosas de Vizela.
Ali nota-se a frescura encantadora, em verdes matizes de eterno veludo suave, que parece constantemente orvalhado pelos aljofres mais cintilantes. Fica na baliza do rio navegável, como um braço fantástico à tona de espumas divinas.
Por ali a vegetação é luxuriante e vetusta, tão alto se elevam as copas daquelas árvores alterosas e opulentas, coroadas de miría­des de flores e folhas variegadas, as raízes tenacíssimas e perfurantes, parecendo suster o solo, com os seus mil braços entrecruzados, à tona das águas deslizantes e cantantes.
As sombras daquela pequena floresta sagrada, onde há surpre­sas duma delicadeza subtil, têm caprichos que lembram bosquejos de sonhos muito doces, muito íntimos, cortados de paixões sere­nas e sadias, de emoções vivas, puras, aromáticas, das que vêm do coração à procura de muitos corações generosos.
E, para que nada falte à Ilha dos Amores, lendas adoráveis e na sua maior parte alentadoras, coroam o belo recinto duma carícia meiga e doce.
Uma delas, porém, é triste como os visos da serra que adiante se desenrola, quando despida dos seus floridos atavios.
Contou-ma uma pobre mulher que encontrei na mesma Ilha dos Amores, acocorada ao pé duma árvore gigantesca, na face estampada uma melancolia sugestiva.

«Há de haver cem ou duzentos anos — quem sabe lá bem ao certo? — viveu aqui uma menina muito linda, que era filha, se­gundo diziam, filha bastarda, já se vê, dum rei de Portugal.
Dizem que tinha uns olhos tão lindos, tão lindos, que quem a olhasse uma vez, ficava logo escravo da princesinha. Quando sol­tava os cabelos sobre os ombros, o sol fazia-os brilhar tanto, que cegavam. Quando se lhe ouvia a voz, todos tinham vontade de chorar.
— De chorar?
— Porque ficavam bem certos de que não tinham merecimen­tos para agradar a tão bonito rouxinol.
Essa menina, porém, passava entre o povo por ser feiticeira. Até se dizia que já tinha encantado muitas pessoas, convertendo-as em flores, e rios e não sei se estrelas. Coisas do povo, já se vê: mas era o que corria para aí, por toda a gente.
Ora um dia, veio aqui um príncipe estrangeiro, muito lindo e viu-a e amou-a logo. Procurou-a para lhe falar e ela recebeu-o, com agrado, mas, apenas ele lhe disse o muito que a adorava, pôs-se a rir, como uma perdida.
— A princesa ri? estranhou o príncipe.
— Rio. É que o príncipe julga-se muito bonito e é feio como os pecados.
— Eu? murmurou ele despeitado.
— O príncipe é um sapo.
Não gostou o mancebo daquela brincadeira de mau gosto e fez sinal de se retirar.
Ela, porém, deteve-o e disse-lhe tristemente:
— Vê como acertei! Não me convinha para esposo um homem que tem vaidade tão excessiva. Que maior fealdade do que o dema­siado amor próprio?
Meu príncipe: a beleza da alma é a única que tem valor.
E despediu-o, com certo desdém.

Por esse tempo vivia em Guimarães um anão muito feio, de olhos estoirados, boca larga e delgada, e cabeça disforme, cheia de cabelos raros e duros.
Andava o príncipe estrangeiro muito desconsolado pêlos arra­baldes de Guimarães, quando a figura do anão se lhe defrontou...
Riu-se o belo príncipe daquela figura exótica, mas o pigmeu, saudando-o, disse-lhe:
— Deus o salve, senhor príncipe. Que pena ser tão feio!
— És então bonito tu? respondeu o belo moço com duro sarcasmo
— Oh! muito mais belo, porque não tenho orgulho no coração. Sei que sou hediondo e resigno-me com a minha sorte e conten­to-me com o destino que Deus me deu.
— Olha lá — disse o príncipe — conheces uma linda princesa que vive em Vizela?
— Tenho ouvido falar.
— Pois anda daí comigo.
Obedeceu o anão imediatamente. Caminharam, por muito tempo, sem dizerem palavra, até que à entrada de Vizela, o pobre anão perguntou:
— Que vou eu fazer à presença de tal formosura? Ë para vos rirdes de mim?
— Anda daí, respondeu o príncipe secamente. (continua)

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