23.8.06

Banhos de Caldas (II)
por Ramalho Ortigão
Ao outro dia acordei ás seis horas e abri a minha janela. Num cercado feito em volta da casa com ripes de pinho, canas e silvas com amoras, os galos espenejavam-se e cantavam ao sol; os coelhos brancos gesticulavam avidamente ao pé de um braçado de couves, ou fugiam ás guinadas. Em baixo, a dez metros de distância, passava o rio entre choupos e castanheiros. No meio do rio havia um moinho, redondo, vestido de musgo e de heras, coberto com um telhado de colmo enegrecido, com grandes pedras pousadas em cima. A água cabia no açude com um estrépito diligente e alegre, e a roda da azenha, gotejando, girava lentamente na sombra húmida.
Defronte, na colina oposta, sobre a outra margem, elevava-se a pequena igreja de S. Miguel , com o seu campanário caiado de branco, tendo ao lado as casas da residência paroquial.
Á varanda da casa, que deitava para o passal, estava a essa hora o reitor, um velho de oitenta anjos, magro, cabelos brancos saindo do seu barrete de retrós e caindo-lhe de cada lado do rosto e sobre a gola da sua longa bata desabotoada; calção curto, meia de lã preta. Ao lado dele uma rapariga de dezoito anos, com um longo colarinho redondo, de folhos, um lenço amarelo de grandes ramagens carmesins encruzado no peito e atado na cinta, as tranças enroladas na nuca dentro de um lenço escarlate, amarrado segundo a graciosa moda do sitio, deixando descoberto o alto da cabeça e pendendo numa ponta sobre as costas.
Ela tinha no braço um cabaz e deitava mãos cheias de milho ou dava-o a comer na sua própria mão ou na mão do padre a toda a espécie de aves adejando no ar ou pousadas na varanda e no beiral do telhado. Eram galinhas, rolas, pombos, pardais, e uma grande arara, presidindo a tudo, pousada no combro do padre.
A rapariga de quando em quando metia milhos na boca, e deitava a cabeça para trás. Então alguns pombos mais estimados, de leque, iam dar – lhe bicadas nos dentes.
Ao pé da minha casa um homem, vestido de saragoça, com grossos sapatos, com o chapéu deitado para traz, a transpirar, descansava com um pé no degrau da escada exterior, tendo um côvado na mão e pousado no joelho o seu fardo constante de peças de palmo, um cobertor de papa com barra azul e uma caixa de pinho chata e quadrada, em que os bufarinheiros trazem as agulhas, as linhas, as rendas, os lenços finos de cambraia e a colecção dos Sabonetes

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